domingo, 5 de dezembro de 2010

MÚSICA PARA NOSSOS OUVIDOS

MÚSICA PARA NOSSOS OUVIDOS

            “Minha arte deve ser consagrada ao bem dos pobres”. Eis uma frase típica de processos hereditários ou introdução bem apropriada para documentos de partilha. Em outras palavras, “ao povo humilde deixo minha arte”, dizia o artista.
            Obras de arte, quando reconhecidas publicamente, são deveras preciosas, verdadeiras fortunas, pode-se dizer. Mas o que dizer quando essa arte é a música, um bem quase abstrato, que retumba em nossos ouvidos, ecoa no coração e pronto? O que dizer quando nesse repertório – em cujo rosário de obras encontramos o “Hino à alegria” – está a ação criativa de um músico totalmente surdo?
            Falo, sim, de Ludwig van Beethoven, falecido aos 57 anos (1827), surdo desde os 30 e cujas melhores composições – dentre elas a Nona Sinfonia – foram escritas nesse período de total silêncio. Silêncio que o tornou sensível ao compasso do coração! Deficiência apenas aparente, pois forçou sua criatividade e não o impediu de continuar fazendo o que mais gostava: compondo, regendo, ensinando, emocionando...
            Falar das suas obras, da sua genialidade musical, da mística e profunda sensibilidade que caracterizavam sua alma, muitos já o fizeram. Beethoven foi o gigante sagrado da clássica música universal. Porém, um gigante deficiente.
            Essa deficiência nos interessa hoje. Numa sociedade exigente ao extremo em relação a seus ídolos e ícones, cuja cultura do corpo perfeito chega às raias do hedonismo, apoiando-se na ideia da perfeição como fator fundamental para o bem viver, a convivência, a ascensão social; numa sociedade que entreabre silenciosamente portas e janelas para doutrinas como o nazismo, tal qual aquela ciência sutilmente justificada, nos nossos dias, como pesquisa genética; numa sociedade racial e preconceituosa até na admissão de seus preconceitos e atitudes anti-raciais, fica no ar o desafio: haveria outro caminho?
            De fato, Deus sempre se utilizou desse outro caminho, de situações aparentemente caóticas e contrárias à nossa lógica, para agir. “O que é fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes (1Cor 1,27-28)”. A aparente limitação de alguns acaba sendo seu ponto forte, quando suplantada pela força interior que nos governa. Ao nos criar, Deus viu perfeição em tudo, a ponto de considerar-nos reflexos de sua própria pessoa. Não apontou qualquer deficiência, mesmo com as inúmeras mutilações que adquirimos ao longo da vida ou na origem dela. O importante para Deus é a pessoa que somos, nas deficiências ou não, porém nunca como deficientes aos seus olhos.
            “Levante-se” é o característico apelo de Jesus para a vida. Tal apelo não é circunstancial, regido por um fato líquido e certo que tange nossos ouvidos, nosso conhecimento. Ao contrário, a vida de Jesus, por si, é um apelo divino por excelência. Através dele, por sua presença e ação entre nós, Deus nos convida com insistência a uma nova postura de vida, mesmo diante do antagonismo de nossas limitações e deficiências.
            A harmonia é condição mínima para a musicalidade. Para a vida também. Podemos optar entre uma marcha fúnebre ou um hino à alegria, mas, de qualquer forma, somos livres para escolher. Se nossos ouvidos captam ou não os sons da musicalidade da vida, os acordes da harmonia do universo, a voz do apelo divino em nossa existência, bem, isso já é outra história. O fato é que a voz de Deus ecoa, não só em nossos tímpanos, mas em todo o Universo. Essa é a mais bela música para nossos ouvidos. Não há como sermos surdos a ela.
WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br

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