O CAVALEIRO DAS TREVAS
Dado ao trivial do
fato, que vem se repetindo no seio da sociedade moderna como algo previsível em
conglomerados humanos, o massacre do cine Aurora não ganhou a notoriedade que
episódios assemelhados tiveram num passado não tão distante. Resumo: a
violência gratuita já não assusta tanto. Tomar de armas potencialmente
mortíferas e sair por aí detonando quem vier pela frente, para muitos, é como
uma diversão qualquer. Mesmo que essa debilidade satânica seja apenas extensão
de um filme, vingança pelo bulling no passado ou válvula de escape de um
trauma, uma decepção, um sonho não realizado, um amor não correspondido.
O
fato é que a ação do atirador James, lá no Colorado norte americano, resultou
na morte de 12 expectadores do último episódio da trilogia de Batman, o homem-morcego
símbolo da justiça imaginada, sonhada, ambicionada por qualquer sociedade que
se queira minimamente humana. O caos que
se estabeleceu naquela sala de espetáculos repetiu em parte o drama também
vivido durante uma sessão do filme Clube da Luta, em S. Paulo (1999), quando
um também estudante de medicina matou três pessoas no escurinho do cinema.
O
que preocupa não é o pitoresco dessas ações – quase todas premeditadas e bem
sucedidas, tendo à frente jovens sem grandes históricos criminais ou razões
efetivamente ponderáveis – mas vindos sempre de famílias bem estruturadas financeiramente.
Triste denominador comum, pois que outra estrutura não há no seio dessas
famílias, posto a situação de extrema miséria moral ou ausência de valores e
respeito humano que se detecta no perfil desses assassinos. Invariavelmente,
são pessoas mal amadas, rejeitas de uma forma ou outra, estigmatizada pelo rolo
compressor da competitividade na vida social, familiar, profissional ou estudantil.
Vingam-se do indiferentismo que as consome por dentro. Querem dizer ao mundo
que também existem, que estão aqui de alguma maneira, que querem fazer brilhar
suas luzes, apesar das trevas, da sala escura de suas projeções sem público,
sem bilheteria.
Nesse
Clube da Luta, fadado ao fracasso, nem o ressurgimento do Cavaleiro das Trevas,
personificado por um homem morcego, um travestido dos porões da imaginação
humana, é capaz de justificar ações de comportamento tão tresloucadas. Nada
poderá amenizar o crime contra semelhantes com a facilitação do mesmo. Já está
provado que sociedade por demais defensiva, proporcionalmente, também por mais
vezes vítima será. Como explicar, por exemplo, uma nação na defensiva total
(250 milhões de armas nas mãos de civis) que não queira arcar com os riscos de
ações de demência aqui e acolá? Bem nos lembra o antropólogo Paulo Ribeiro: “Arma
não tem regra: é violência que sai do cano. Quanto mais fácil o acesso, mais
malucos podem obtê-las” (FSP).
Entre
a ficção e a realidade apenas uma tênue linha traça divisas. Nas páginas da
História da Salvação, quando uma catástrofe ou episódio aterrador ameaçava o
povo de Deus, era comum a pergunta: Onde estás, ó Deus, que não nos salva?
Ironicamente, os apelos ao personagem Batman, herói das páginas das histórias
em quadrinhos que encantou e preencheu o tempo de muitos, a frase mais comum
era esta: “Onde está Batman quando mais precisamos dele?”. O contexto das
questões não difere muito, pois que entre a realidade e a ficção o perigo maior
é a banalização dos fatos. A violência nunca poderá ser tratada como tal, sem
avaliação de suas causas e consequências, sem o extermínio das fontes geradoras
e facilitadoras de sua ação e corrosão humana. O que está em julgamento não é a
ação de infelizes débeis mentais, com suas armas a tiracolo, mas a inoperância
dos fabricantes e facilitadores desses enredos apocalípticos. Como diz a
advertência escatológica: “Vi aparecer um cavalo preto, e o seu cavaleiro tinha
uma balança na mão” (Ap 6,5). Oh, céus, que essa balança nos faça justiça!
WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br
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