O SOL NASCEU PRA TODOS
Mas
não nasceu pra mim, completava Jean Carlo, cantor cego que fez sucesso com o
hit “Eu nasci pra você”, na década de sessenta. “Foi uma versãozinha sem
vergonha que me deixou famoso” – disse um dia, concluindo: “Por ser cego, este
refrão comoveu o Brasil inteiro”. Depois disso, na década de setenta abandonou
tudo para se juntar a um grupo de artistas dispostos a evangelizar. Foi um dos
fundadores do Meac, grupo de missionários leigos católicos, que até hoje teimam
nessa loucura, ou seja, usar seus dons para evangelizar. Porém, desde o último
dia 02 de julho, Jean não mais sentirá o calor do Sol que nasce para todos...
Partiu para a casa do Pai, aos 70 anos.
Falar
aqui desse companheiro de vida missionária, com o qual percorri inúmeras
comunidades e experimentei o autêntico sabor de uma amizade abençoada, um
companheirismo fraterno e desinteressado, não é tarefa fácil. Passa um filme em
minha mente. Prefiro, então, resgatar um pouco de suas palavras, já que não
mais ouvirei seu timbre afinadíssimo, que tocava os corações quando cantava ou
sua risada aberta, quando expandia seu bom humor com anedotas e pegadinhas
quase inocentes. “Onde é o interruptor da luz?”, perguntava quando lhe
apresentavam uma casa, um recinto qualquer. E muitos caiam nessa pegadinha...
Ora, pra que um cego quer luz?
Quando
o assunto exigia senso crítico, pegava pesado. Companheiro de Roberto Carlos,
Erasmo e Vanderleia ou mesmo João Gilberto, Tom Jobim e Chico Buarque, deixou o
meio artístico por se sentir marginalizado. Dizia que a sucessão de novos
ídolos na música popular brasileira era parte de um esquema de dominação das
grandes gravadoras, que “espalham o ópio; e o ópio do povo precisa continuar”.
Segundo ele, foi o que aconteceu com Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo, que
“sumiram porque não eram interessantes e sofreram tanto que não mais tiveram
coragem de voltar”.
Sobre
o País na década de oitenta, foi taxativo: “Estão brincando com o povo no
Brasil, sem saber que este povo tem condições de decidir por si próprio. Já
existe consciência do direito e resta ser instituído o respeito como condição
para um mundo melhor”, disse em reportagem que ouvi em off. Ora , esse alerta não
é atual? Então continuava: “Sinto hoje a realidade do meu povo, o que não
acontecia antes, porque o artista comercial não sente na carne as verdades
daquilo que às vezes canta”. Quando canta, porque o que hoje se ouve é uma
verdadeira sucessão de aberrações musicais.
Para
ele, a realidade do mundo artístico tinha muitos falsetes. Por isso, deixou
esse meio e passou a percorrer estradas sem fim, levando a mensagem cristã. Nos
últimos anos, reduziu o ritmo, fazendo apenas esporádicas apresentações em
emissoras de TV católicas. Mas nunca deixou sua fé, que defendia com um
apuradíssimo senso crítico, questionando sempre. Esse era Jean, o cego que bem
enxergava com os olhos de uma alma límpida e um coração generoso. Fé que sabia
exaltar com seu talento musical.
Tanto
que ainda hoje me emociono ao ouvir sua voz cantando “Creio em Ti”. Dou graças
pelo Sol que um dia brilhou em sua vida, em seu coração, e transformou uma voz
de sucesso garantido – intérprete de “Aline”, “Nights of September”, “I´ll
Never Walk Alone Again” e muitos temas de novela, em especial “Another Song” da
novela Semideus - num murmúrio quase sagrado para muitas consciências... Morreu
quase no anonimato, sofrendo durante dois anos num leito hospitalar, longe do
público, longe dos irmãos de fé, dos muitos amigos que conquistou – dentre
eles, eu. Como disse um amigo em comum, Fonseca, comentando sua morte: “Um dia,
assim como o Jean, o Neimar, Zé Geraldo, Mazola, Valdice... os que se foram,
eu, você, todos do Meac, nos resumiremos a isso, três linhas de comentários no
Facebook”. Respondi, sem pensar: “Que essas linhas tenham ao menos um pouco de
conteúdo”. E Jean Carlo os tinha com sobra.
WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário