PASSANDO O RODO
A situação estava intolerável. Ninguém mais suportava aquele cheiro ácido e aquela fumaça quase tóxica, a provocar narinas e olhos mais delicados. O ambiente putrefato e lúgubre já era insuportável até para baratas e escorpiões. O que se diria para um ser humano! Nem é bom pensar... Ali, naquelas ruínas fétidas, úmidas, impróprias até mesmo para a função de um depósito de lixos – pois qualquer aterro sanitário seria mais higiênico que aqueles logradouros ditos públicos – ratos, cães e humanos coexistiam em perfeita harmonia... Isso tudo no coração da mais arrojada e moderna cidade brasileira, São Paulo, rincão desse país da ordem e do progresso.
Mas não se via luz imediata. As ações naquela área doente e corroída pelo consumo de drogas, em especial o crack, se limitavam a esporádicas reações de aversão, nunca compreensão, compaixão. Imaginem: até desinfetante a prefeitura já usou em uma de suas frustradas tentativas de “saneamento” do local! A vergonhosa mancha continuou, incrustada não no cimento dos decadentes logradouros, mas na carne viva do coração paulistano. Não é logo ali o Parque da Luz? A porta de entrada para esse paraíso não se chama Largo Coração de Jesus? Um pouco mais adiante não está a Praça Princesa Isabel, a redentora da escravidão? O outrora charmoso e luxuoso Bom Retiro, vizinho contrastante, ainda faz jus ao nome? Higienópolis não está logo ali? E não é nesta área que se projeta a mais audaciosa obra de reurbanização e revitalização da grande metrópole brasileira, com o sugestivo nome de Projeto Nova Luz?
Então, mãos à obra! Antecipando o cenário político que já desponta com sua carnificina de interesses partidários, o poder repressivo mostra suas garras, numa operação policial sem precedentes, - qual máquina de esteiras que arrasta para longe tudo o que encontra pela frente – apenas e tão somente para fincar naqueles escombros (arquitetônicos e humanos, diga-se de passagem) a bandeira de suas ações repressivas. Resultado: uma leva incontável de tristes farrapos humanos, muitas jovens, - muitas crianças - é escorraçada do “ambiente de apoio mútuo”, que para muitos deles era a prefiguração de um lar, doce lar. Pobre cidade, incapaz de amparar, acolher, abrigar seus filhos mais carentes! Pobre polis, sem política social!
As ações repressivas das instâncias de governo contra a alcunhada região da cracolândia, São Paulo, é o típico tiro de um soldado contra o próprio pé. A limpeza foi aplaudida por muitos, mas apenas se transferiu um problema social. Não será dispersando aquela pobre população de dependentes químicos que se acaba com a dependência, sabemos disso. Mas usamos da política dos três macacos (não ver, não ouvir, não dizer) mais habitualmente do que pensamos admitir, pois silenciar-se e conformar-se com tão amadoresca e aviltante ação de governo, sejamos francos, é degradante para qualquer cidadão com vergonha na cara. Estamos passando o rodo na lama, secando o gelo do nosso indiferentismo, usando peneiras contra a luz que nos ilumina... Apenas empurramos um problema!
O mal está feito. Soltamos uma bomba dentre centenas de irmãos nossos, acionamos nossas sirenes, gritamos contra eles nossa indignação, nossa aversão, como a lhes dizer: Vocês não prestam, não servem pra nada, a não ser como lixos, dejetos da nossa sociedade. E, como tais, devem ser varridos do nosso meio! Sim, foi esse o recado que lhes mandamos com a prepotência de nossas ações de truculência. Extirpamos com violência um câncer do próprio corpo. Quem vai curar essa ferida? Tardiamente, uma comunidade católica da região saiu às ruas, em protesto. Levava à frente o ostensório do Santíssimo, numa inusitada procissão para acolher alguns viciados remanescentes daquele reduto de infelizes. Tardiamente, eu disse... Mas antes tarde...
WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br
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