A POMBA E O CARDEAL
Dizem os mais
sensíveis que Deus nos fala através de sinais. Como não me julgo tão sensível
assim, às vezes me demoro a perceber a ação de Deus nos muitos sinais que
povoam nossa estrada. Mas que estes existem, existem. Muitos são clamorosos em
seus apelos à consciência; outros discretos, mas tangentes e objetivos; outros
mais nos chegam revestidos de muita criatividade, poesia, sensibilidade,
sentimentos próprios de alguém que nos tenta provar seu mais puro amor.
Certa
ocasião, fazia eu um trabalho de animação missionária na cidade de Tupã-SP,
ocupando a liturgia da palavra em todas as celebrações daquele final de semana,
numa das paróquias daquela cidade. De repente, na última das celebrações, um
pássaro invadiu a igreja e passou a sobrevoá-la silenciosamente, enquanto me
ocupava com meu blá-blá-blá. Aquele voo silencioso e impróprio ao local me
incomodava. Afinal, que fazia ali aquela criatura de Deus?
Chegou,
então, o grande momento litúrgico. O celebrante conduzia o rito eucarístico e,
no momento da consagração, fez suas abluções, inclinou-se sobre as oferendas,
proclamou as misteriosas palavras de Cristo e elevou aos céus o pão consagrado.
O silêncio então foi quebrado, não pelo som da sineta de um coroinha, mas pelo
trinado do pássaro invasor, que se lançou do beiral onde se refugiara em voo
mais que rasante sobre o altar: “Bem-te-vi, bem-te-vi”. Da mesma forma na
elevação do cálice, o único som na igreja era a saudação daquela criatura em
linguagem bem coloquial para os ouvidos moucos da assembleia, dentre eles o
meu: “Bem-te-vi, bem-te-vi”. E assim aquele pequeno pássaro bateu suas asas
para bem longe...
Toda
essa introdução me veio à tona diante de uma cena que encantou muitos corações
nesta semana. Durante o cortejo fúnebre e o velório de D. Eugenio Sales, uma
pomba encantou a todos. Solta por um voluntário, à saída do cortejo da
residência episcopal até a catedral metropolitana do Rio, o pequeno pássaro não
quis bater suas asas em direção à liberdade, mas acompanhar mais de perto a
despedida de um homem santo. Pousou sobre seu ataúde e ali ficou até que este
fosse depositado no chão da imensa catedral, palco e sede de seu pastoreio por
mais de 30 anos. Fim da cena? Não, mas momento de maior discrição, já que por
aquele esquife passariam mais de dez mil pessoas. Então, para não incomodar a
tantos, a pequena ave pousou aos pés do cardeal velado e ali ficou em seu
mutismo repleto de simbolismo: “Eis que os céus se abriram e viu descer sobre
ele, em forma de pomba, o Espírito de Deus” (Mt 3,16).
Multidões
acorreram para aquela igreja, não apenas para despedirem-se do santo e bondoso
padre que partia, mas também curiosos para comprovar o pitoresco velório de uma
pomba sobre o outrora primoroso cardeal – fato que toda a imprensa já alardeava
como sinal dos céus ou coisa assim. Mas,
no segundo dia, a pomba buscou um lugar mais à distância daquela turba de
caçadores de sinais. Acomodou-se num pequeno nicho rente ao telhado e ali, das
alturas, ficou até o final daquelas exéquias, como que a esperar um sinal dos
céus, “um vento impetuoso que enchesse toda a casa”, para que um povo
santificado retomasse suas obrigações com mais ardor e consciência dos deveres
de cada um. A pomba retomou seu caminho. O povo também. Mas o cardeal, aquele
que muito nos ensinou com seu testemunho, coerência e autoridade, volta
momentaneamente para o seio da paz celestial, com a alegria do dever cumprido.
Os
sinais continuam a pontuar nossa estrada. Para o cristão, a pomba branca
simboliza o Espírito Santo. Qualquer criatura de Deus é sempre portadora da
magnitude de seu amor, instrumentos de sua incansável busca pelas ovelhas mais
arredias e inseguras. Se calarmos nossas vozes, fecharmos nossos olhos, as
pedras clamarão por nós, os pássaros, as criaturas... “conforme o Espírito
Santo lhes permitir que falem”.
WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br
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