IMUNIDADE AMEAÇADA
Não só de imunidade parlamentar vive o político brasileiro. Também – e principalmente – porque um dia em suas vidas adquiriram imunidade biológica contra esta ou aquela doença. Neste quesito, somos uma nação abençoada, onde uma necessidade gritante fez nascerem vários institutos de pesquisa científica, que salvaram sua população de pelo menos três surtos endêmicos: a peste bubônica, o tifo e a febre amarela. Assim surgiram os Institutos Oswaldo Cruz, Vital Brazil e Butantan.
A biografia de pelo menos três grandes sanitaristas brasileiros é um marco histórico de heroísmo e audácia. Quando a peste bubônica ceifava milhares de moradores litorâneos, no inicio do século 20, Oswaldo Cruz propôs ao governo do Rio a fabricação nacional de um soro adequado ao combate epidemiológico, pois que a importação de qualquer remédio, naquela época, era um processo moroso e de alto custo. Paralelamente, em São Paulo , os sanitaristas Vital Brazil e Emílio Ribas somavam forças para transformar a velha fazenda Butantan, às margens do rio Pinheiros, em um centro de pesquisas e produção do soro antiofídico. Foram os primeiros passos para a descoberta de novas vacinas, eficientes não só no combate à peste que assustava o Brasil, mas igualmente outras mazelas epidemiológicas da época.
Tempos áureos da pesquisa brasileira! Mas emblemáticos nos dias atuais! Segundo artigo do professor Isaias Raw, atual presidente do conselho científico e tecnológico da Fundação Butantan, uma terrível ameaça ronda a lisura de uma história quase sacrossanta. Querem acabar com o Butantan! Sim, foi isso mesmo que você leu. Segundo o título de uma das publicações de Tendências/Debates da FSP de 18 de dezembro de 2011, “O Butantan desafia o cartel das vacinas”. Linha por linha, detalhe por detalhe, o artigo do cioso professor é de um teor evidentemente preocupante, decepcionante, (diria até: questão de segurança nacional, que merece intervenção de nossos governantes). Fica evidente mais uma vez o jogo de interesses do monopólio farmacêutico, das leis de patentes, de mercado, que priorizam o lucro, nunca a saúde pública. Está na hora do governo deixar de lado seu caráter assistencialista, humanitário, e pensar mais no lucro, na sua identidade capitalista, parece dizer o texto.
Para quem não teve o desprazer de ler esse desabafo de um cientista emérito, mas amante da história de idealismo sem fronteiras de seus antecessores (talvez até dele próprio) eis a chave de sua denúncia: “É preciso liquidar o Butantan, porque nós ousamos desenvolver novas vacinas e a tecnologia para sua produção! Voltaríamos a ser mais um enorme mercado, num país sem desenvolvimento. Aceitaremos ser colônia?”. Tudo porque uma empresa bem sucedida na produção de medicamentos (qual não é?) tenta convencer o governo de São Paulo a lhe vender a divisão bioindustrial do Instituto. Fica evidente no texto que a indústria farmacêutica quer inflacionar o custo da produção brasileira de vacinas, que é muito baixo em relação ao mercado mundial. Cita como exemplo a vacina contra tétano-difteria-pertussis, com o custo de R$ 0,30 e que as multinacionais copiaram e vendem a um custo de 50 vezes mais. “Sem confiança de que podem controlar o Butantan, tentam comprá-lo; para as empresas o ideal é o país voltar a ser um enorme mercado para vacinas”, denuncia o lead desse heróico texto.
Mas nem tudo é assustador. Em meio a tantas e tamanhas mazelas, eis que o articulista nos deixa uma notícia alvissareira. Já temos a vacina contra a dengue. Poderá ser fornecida ao Ministério da Saúde por cerca de R$ 2, se não conseguirem “bloquear o ensaio clínico, que começa em poucos meses”. O veneno que mata, segundo o conceito de Vital Brazil, é o mesmo que salva. Seu lema era “Veritas super omni” e, como bom espiritualista, era profundo conhecedor da Bíblia. Morreu vítima de uma das doenças que tanto combateu, a febre amarela. Pois é: queremos “a verdade acima de tudo”.
WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br
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